Circular do MRE aos Consulados de abril 2022: Restrição de emissão de passaportes para Brasileiros no Exterior em pendência de inscrição eleitoral

Juliana Wahlgren

Marcia Baratto


Histórico

Em 19 de abril deste ano, Consulados ao redor do mundo (como o de Chicago, Lisboa, Roma, Barcelona, Bruxelas) anunciaram nas suas redes sociais e sites que as regras para emissão de passaporte para cidadão brasileiro/a no exterior mudaram. A regularização eleitoral (que comumente era entendida como certidão de quitação eleitoral pelo TSE) passou a ser interpretada restritivamente: só eleitores inscritos no exterior podem solicitar passaporte regular (validade entre 5 e 10 anos). Após 04 de maio de 2022, para brasileiros fora do país que não fizeram a regularização do domicílio eleitoral para seu país de residência, as possibilidades de emissão de passaporte passam a ser reduzidas no tempo da validade do documento e os critérios de concessão se tornam mais exigentes.


Esta Circular do MRE prevê que:


A questão que parece meramente administrativa tem, contudo, potenciais efeitos desastrosos para acesso à direitos fundamentais de brasileiras e brasileiros que vivem no exterior, especialmente para comunidade brasileira migrante sem residência regular, ou pessoas da comunidade sobrevivendo a situações de violência e exclusão social, como são, por exemplo, os casos de vítimas de super exploração laboral ou vítimas de violência doméstica, que muitas vezes têm seus documentos de identidade retirados pelos abusadores. As restrições da circular poderão significar redução do direito de ir e vir, acesso a direitos fundamentais básicos como saúde e segurança social. É um ato administrativo abusivo que viola os direitos humanos das comunidades brasileiras fora do país.

Na sequência, links e imagens


Possível base jurídica explorada para a aplicação da circular pelo MRE


A lei n.4737/65 que institui o Código Eleitoral, explicita em seu artigo 7o.:


"Art. 7º O eleitor que deixar de votar e não se justificar perante o juiz eleitoral até trinta dias após a realização da eleição incorrerá na multa de três a dez por cento sobre o salário mínimo da região, imposta pelo juiz eleitoral e cobrada na forma prevista no art. 367."


O mesmo dispositivo dispõe ainda sobre as sanções administrativa aplicada em caso de irregularidade de registro eleitoral:

"§ 1º Sem a prova de que votou na última eleição, pagou a respectiva multa ou de que se justificou devidamente, não poderá o eleitor:

(...)

V - obter passaporte ou carteira de identidade"

E por fim conclui:

"§ 4º O disposto no inciso V do § 1º não se aplica ao eleitor no exterior que requeira novo passaporte para identificação e retorno ao Brasil."

Entretanto, para a emissão do passaporte no exterior, a aplicação e a interpretação deste dispositivo deve ser lido em sincronia com o Decreto 5978/06 e o Decreto 8374/14 que dão nova redação ao regulamento de documentos de viagem:

"Art. 22. São condições para a obtenção do passaporte comum, no exterior:

I - ser brasileiro;

II - comprovar sua identidade e demais dados pessoais necessários ao cadastramento no banco de dados de requerentes de passaportes;

III - estar quite com o serviço militar obrigatório;

IV - comprovar que votou na última eleição, quando obrigatório, pagou multa ou se justificou devidamente; (...)"

Este artigo foi complementado pelo Decreto 8374/14 que propõe novas instruções para obtenção de passaporte definidas no art 22 do Decreto 5978/06:

"Art.22

(...)

§ 2o Havendo fundadas razões, a autoridade consular concedente poderá exigir a apresentação de outros documentos, além daqueles previstos no § 1o, ou entrevista presencial com o requerente.

(...)

§ 5o O passaporte poderá ser concedido condicionalmente ao requerente que não esteja em dia com suas obrigações eleitorais, quando comprovada a necessidade do documento para sua permanência no exterior e não couber a expedição de autorização de retorno ao Brasil, observada a exigência de posterior regularização da situação eleitoral ."

E concede ainda o poder ao MRE para definir as condições para concessão de passaportes de emergência e a ARB:

"Art. 23. As condições para a concessão, no exterior, dos passaportes de emergência e para estrangeiro e do laissez-passer serão estabelecidas pelo Ministério das Relações Exteriores. "

Considerações sobre a interpretação restritiva da circular

A Circular do MRE de abril de 2022 apresenta uma interpretação mais abrangente sobre os critérios de obrigação eleitoral e inclui a necessidade de transferência do domicílio eleitoral para o Consulado de residência dos eleitores no exterior como categoria extra de regularidade.

Antes da distribuição desta Circular, a interpretação de regularidade de obrigações eleitorais se limitavam à manutenção de um título ativo, ao pagamento de multas quitadas e às justificativas em caso de ausência no dia da eleição. Após essa comunicação interna aos chefes das repartições consulares, o MRE usa das brechas e lacunas do Código Eleitoral para uniformizar o conceito de obrigação eleitoral à condicionante acessória de transferência do título à zona eleitoral no exterior, e por conseguinte, aplicar as restrições aos protocolos de emissão de documentos de viagens para brasileiros fora do país.

As restrições e condicionantes atribuídas à concessão de passaporte não deveriam ultrapassar as definições e critérios de regularização estabelecidos pelo Código Eleitoral. Em breve análise, existem no mínimo:

Por essas razões, o mais acertado seria a revogação da circular e a manutenção da atual prática para emissão de passaporte.

Links para sites e redes sociais de consulados alertando para a modificação de entendimento (verificado em 05 de maior de 2022): 

Bruxelas: 

https://cgbruxelas.itamaraty.gov.br/pt-br/News.xml

https://www.instagram.com/p/Cckv7Vbt_gu/?igshid=MDJmNzVkMjY=

Barcelona: 

https://barcelona.itamaraty.gov.br/pt-br/News.xml


 

Análise de um caso: Haia 28

Bianca Raimundo e Marcia Baratto

Uma mulher brasileira se casa com um homem europeu no Brasil. Os dois partem para um país na Europa, e lá ela começa a sofrer violência doméstica. É isolada dentro de casa, não recebe autorização para sair, não recebe acesso a contas bancárias, tudo passa a ser controlado pelo companheiro. As brigas iniciam-se, ele diz que a ama e só é 'protetor' pelo bem dela. Ela engravida, tem a primeira filha em solo estrangeiro. A menina não é registrada como brasileira, já que o legado cultural da mãe 'não importa' para a nova família que se forma na Inglaterra. A violência psicológica e administrativa se intensifica. Ela é agredida com empurrões e beliscões, nada muito 'sério' que justifica uma denúncia pensa ela, nada sério perto do tanto que ela o 'provoca' verbaliza ele.

Na sequência, os pedidos de perdão e promessas de mudança. O casal tem uma segunda criança, que também nasce e não é registrada como brasileira. No puerpério, deprimida, as agressões físicas retomam. Isolada no trabalho doméstico com duas bebês, a mãe não se integra a sociedade onde vive. Não aprende a língua estrangeira, não tem trabalho remunerado fora de casa, não convive com a comunidade brasileira na cidade onde mora. A 'culpa'? Segundo seu agressor, dela mesma. Deprimida e sempre irritada, é 'impossível' conviver com ela.

A violência física escala mais uma vez: dias após um aborto, ela é estuprada por ele. Mil pedidos de perdão na sequência, mais crises de raiva porque ela 'não o entende', nem admite o quanto ela o provoca e se 'comunica' mal, o quanto ela interpreta errado tudo o que ele faz para protegê-la e amá-la. Ela não saí mais de casa e o controle se intensifica, o agressor passa a acompanhá-la a todas as consultas médicas dela, mesmo quando ela é a paciente. Retira o contato com a família no Brasil e amigos. No ano de 2019, numa dessas consultas, ela pede ajuda. O marido diz que ela não sabe o que está falando, a assistente social entra e pede para falar sozinha, com interprete, com a brasileira na próxima semana.

O agressor oferece uma viagem para o Brasil, só ela e as meninas, para ela 'tratar da depressão', como moeda de troca, para ela não criar problemas com a assistência social. A mãe pensa que essa é a sua melhor rota de escape: voltar ao Brasil e com apoio da família, no país onde ela é cidadã e domina a língua, fazer a denúncia da violência doméstica sofrida, disputar a guarda das meninas (cujos os cuidados diários são 100% responsabilidade dela) e reconstruir sua vida.

Seis meses depois, no começo de fevereiro de 2020, a justiça brasileira em primeira instância decide que as duas meninas devem voltar para a Inglaterra. A denúncia de violência doméstica parece ser 'apenas o desentendimento de casal' e que qualquer denúncia deve ser avaliada pela justiça britânica, já que a mãe cometeu a retirada ilegal de duas crianças do seu território de residência habitual, infringindo o protocolo 28 da Convenção de Haia.

A mãe apela da decisão, antes da segunda instância brasileira suspender a viagem das meninas, o retorno acontece. Ela voltou com as filhas, para a casa do seu agressor. Lá, desde então, é pressionada a 'retomar o casamento, para que sejam uma família feliz novamente'. Mas o período longe do agressor, ainda que ilegal aos olhos do judiciário nacional, trouxe bons frutos. Ela se empodera, e pelo telefone com linha brasileira, mantém contato com família e redes de organização de apoio à mulheres brasileiras vítimas de violência doméstica. Recebe, via whatsapp, quando seu agressor não está perto, apoio psicólogo, conselhos jurídicos, apoio social e constrói uma rede de contatos para si e seu caso. Profissionais voluntárias traduzem seus pedidos, encaminham reuniões com assistência social e a apoiam diariamente quando o confinamento com seu agressor se inicia por conta da pandemia. A violência, volta para o seu ciclo habitual: promessas de amor, chantagem emocional e, por fim, o último ciclo da violência psicológica, ameaças - 'jamais verá suas filhas, se houver divórcio eu fico integralmente com a guarda delas, vou te jogar para fora de casa em plena pandemia, ninguém irá acreditar em você'. No final de Abril, a vaga para o refúgio de mulheres sexualmente agredidas surge. Acompanhada por uma diretora da LAWA, que também é brasileira, ela espera ele sair de casa para o mercado e em 20 minutos faz as malas, vai até a polícia (levada por brasileiros que conheceu online, via a rede apoio), denuncia a violência sexual e doméstica sofrida e é encaminhada para o abrigo.

Tentando contornar a justiça de família e a criminal, o agressor aciona a Higw Court inglesa alegando que a mãe está 'fugindo novamente para o Brasil', e a única forma de provar que isso não está acontecendo, é a justiça inglesa dar o endereço de onde ela se encontra. A batalha legal assume ares dramáticos, porque se a justiça atender a esse pedido, a política nacional inglesa do sigilo do endereço dos abrigos (medida essencial para a segurança e recuperação psicológica e emocional das vítimas de violência doméstica) estará ameaçada: qualquer acusado de agressão poderá solicitar o endereço da vítima na justiça.

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